#OpFeminicídio: Era uma vez…

Operações 27 de Abr de 2023

Saudações cidadãos do Mundo. Saudações cidadãos do Brasil.

Estamos observando, revoltados, o grotesco aumento do feminicídio em nossa sociedade. O pai de toda essa atrocidade é o machismo, que vem criando tentáculos e mudando de forma, se apresentando sempre de uma maneira mais moderna e personalizada conforme o interesse do freguês. Freguês esse que hoje já tem os mais diversos nomes: incels, red pills, alphas, cidadãos de bem, entre vários outros, que invariavelmente são fruto da incapacidade de lidar com as frustrações da vida e insuficiência humana. E se de um lado temos homens que não foram criados para sentir - alguns, nem para pensar - do outro temos décadas e décadas de discurso sobre como a mulher só encontra a felicidade para todo o sempre quando arruma um príncipe no final. A questão é que, fora dos contos de fadas, a realidade não é bonita. Não é final feliz. Não tem cavalo branco e arco-íris. Tem sangue.

Durante o ano de 2022, uma mulher morreu a cada 6 horas no país, de acordo com o levantamento do Monitor de Violência. Ao todo, foram mais de 1,4 mil mortes causadas pelo horroroso crime de ser mulher. Na maioria desses crimes os autores eram ou foram companheiros das vítimas. A região Sudeste lidera nos índices, concentrando mais da metade do total de casos registrados. Mas não foi o número de ocorrências que aumentou, e sim o número de denúncias e a divulgação desses casos. Muitas mulheres, a maioria talvez, ainda se calam sobre agressões e ofensas. Acreditam em mais uma chance, se apegam à esperança de que o amor é a solução para tudo e, principalmente, lutam para que a relação “dê certo”. Lutam por aquele final feliz que venderam nos filmes e contos. Muitas das vezes, esse “dar certo” significa manter um relacionamento tóxico, cruel, desigual e violento para não assumir a culpa e a vergonha por ter “falhado”, sem sequer notar que esse peso não lhe pertence.

Relacionamentos tóxicos e ciclos abusivos não se iniciam da noite para o dia. Segundo a psicóloga Lenore E. Walker, pioneira nos estudos sobre esses casos, os vínculos tóxicos se desdobram em três fases distintas:

1) A inicial, ou relaxamento, considerada como “Lua de mel”, que se refere ao início e também surge nas reconciliações, quando o homem se retrata e promete “a lua embrulhada para presente”, reatando assim o vínculo;
2) A da pressão ou tensão, quando então iniciam-se as ofensas e o tratamento se torna “áspero”, originando as discussões, que se acirram progressivamente;
3) A Explosão, quando a violência explode de forma psicológica, moral, patrimonial, sexual, chegando até mesmo à agressão física e à morte.

Os contos são conhecidos por terem se tornado clássicos imortais da literatura. Imortais também no condicionamento da mente feminina. Se prestarmos atenção, a princesinha é sempre a mulher jovem, bela, inocente e submissa. Aquela que sempre está bem penteada, contida a ponto de conseguir andar com sapatos de cristal, discreta, “prendada” também, ou seja, sabe fazer - e faz - tudo por todos: costura, faxina, cozinha, aconselha, lava para sete machos anões. É humilde também; pode viver em uma torre apenas e se presta até a fazer seu próprio cabelo de corda para que o homem inábil a alcance sem maiores dificuldades! Já “bruxa” é a mulher velha, anciã, solitária, inacessível, invejosa, malévola. Mulher livre e sábia sempre foi rotulada para servir de mau exemplo a não ser seguido pelas outras. Por que não é fácil perceber que “dar certo” não depende apenas de um lado? Por que não abandonamos o que nos faz sangrar e chorar, sempre preferindo o perdão? Quando foi que aprender a chorar baixinho para não incomodar e não expor “da porta para fora” as agressões que mutilam se tornou aceitável?

É sobre isso que estamos falando aqui.

A GATA BORRALHEIRA NA CARRUAGEM DE ABÓBORA

“Libertar a mulher é recusar a encerrá-la às relações que ela mantém com o homem, não as negar” - Simone de Beauvoir

Confirmando a tendência analisada, dia 19 de janeiro, na cidade de Sorocaba, mais um ex-companheiro se dirigiu até o trabalho da ex mulher com a premeditação de atentar contra ela. “A isca” foi o argumento da preocupação com os filhos e prometendo levá-la para casa, a convenceu a entrar em seu carro. O trajeto foi alterado durante o percurso, acabando em um terreno em construção, onde a vítima foi espancada e estuprada. Fingindo passar mal para ser levada ao hospital, a vítima conseguiu ficar a sós e denunciar o abusador. A equipe do Pronto Atendimento do Parque Laranjeiras acionou a Guarda Civil Metropolitana e, estrategicamente, protegeu a vítima a colocando no soro enquanto o canalha agressor a aguardava na recepção, insistindo que ela estava bem e “poderia ir embora.” Neste caso os policiais conseguiram chegar a tempo e o ex-companheiro, embora tenha tentado fugir, acabou preso em flagrante. Após a audiência de custódia, sua prisão foi convertida em preventiva.

Prisão em flagrante acontece para evitar a consumação de um crime, par impedir uma fuga, para proteger elementos informativos e garantir a integridade física dos envolvidos. Esse tipo de prisão ocorre em algumas situações diferentes. O flagrante próprio (art. 302, I e II do CP), acontece quando o agente é flagrado (daí ‘flagrante’) praticando o crime (ou logo após cometê-lo); o flagrante impróprio (art. 302, III do CP), chamado de “quase flagrante”, é quando o autor da infração é perseguido e alcançado em condições que façam presumir sua autoria e temos ainda o flagrante presumido, ou ficto, (art. 302, IV do CP) que acontece quando em seguida ao crime, o suspeito é encontrado portando material que leve à presunção dele ser o autor do ato.
Já para a prisão preventiva acontecer tem que haver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. A prisão preventiva não tem prazo, e pode ser mantida enquanto houver motivo para a sua manutenção. Além dessas provas e indícios tem que existir também a necessidade de se evitar que algum mal maior ocorra. O art. 312 descreve quais motivos podem causar uma preventiva: garantia da ordem pública, impedindo que o agente continue a solto fazendo merda; para impedir que o suspeito atrapalhe a produção de provas; para não permitir que ele fuja; garantia da ordem econômica ou por descumprimento da medida cautelar imposta:

Dá para imaginar seu corpo sendo tocado contra a sua vontade? Você sentir medo, nojo e dor ao mesmo tempo em que fecha os olhos tentando não ver, junta todas as suas forças para se libertar daquelas mãos grosseiras e, ainda assim, alguém conseguir te conter e te dominar? Não conseguir gritar vendo sua vida em risco, se imaginar morta deixando filhos sozinhos no mundo, questionar o motivo dele estar fazendo isso, tudo no mesmo instante? Talvez quem nunca tenha passado por isso não consiga supor, mas com certeza quem viveu jamais conseguirá esquecer. Feridas tatuadas em cicatrizes de dor, de vergonha e de arrependimento, que a própria vítima tenta esquecer e que a qualquer gatilho voltam em avalanche… Para sempre!

CHAPEUZINHO VERMELHO

“No dia em que for possível à mulher amar em sua força, não em sua fraqueza, não para fugir de si mesma mas para se encontrar, não para se demitir mas para se afirmar, nesse dia o amor se tornará para ela, como para o homem, fonte de vida e não perigo mortal” - Simone de Beauvoir

Em Setembro de 2021, no estado do Piauí, uma mãe denunciou os abusos sofridos por sua filha à Delegacia de Proteção aos Direitos da Criança e do Adolescente (DPCA), que pediu a prisão do abusador, para variar, um membro da família. O estuprador Marcos Vitor Dantas Aguiar ingressou na família quando tinha apenas 8 anos de idade e seu pai se casou com a irmã da denunciante. Ainda adolescente, Marcos cometeu seu primeiro abuso sexual durante uma viagem em família, quando se trancou no quarto do hotel com a sua “nova prima” de 5 anos. Tais abusos duraram quase 10 anos, durante os quais ele aproveitava da ausência de adultos e da ingenuidade das crianças, para violentar a sobrinha de sua madrasta e suas irmãzinhas de 3 e 9 anos enquanto “brincavam”. A suspeita só veio tardiamente quando a mãe biológica e a madrasta da menina de 9 anos, desconfiaram dos abusos devido à mudança de comportamento, que se tornou depressivo, ela passou a se automutilar e apresentar perda de rendimento escolar. Ao ser questionada, a sobrinha narrou o ocorrido e, além dessa violência, as mães ainda decobriram ao menos outras cinco crianças vítimas do mesmo tarado.

Diante das denúncias, o estuprador e pedófilo Marcos se mudou para Manaus para cursar medicina, sendo expulso graças à repercussão. Fugiu então para a Argentina, onde permaneceu por mais de um ano, com uma nova identidade levando, impunemente, uma vida normal. Em novembro de 2022, Marcos foi condenado a 33 anos e 8 meses de prisão, pelos estupros de sua irmãzinha de 9 anos e de sua prima de 12, sendo absolvido pelo crime relacionado à irmã de 3. Marcos foi incluído na ‘Difusão Vermelha’ — Órgão que engloba mais de 190 polícias rodoviárias e em janeiro de 2023, em uma operação que contou com o apoio conjunto da Interpol, do Corpo de Investigação de Buenos Aires e da PF Argentina, finalmente foi preso em Mar del Plata.

Segundo o Guia Operacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, lançado em 2020 pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil do Ministério da Justiça, define violência sexual como: “uma violação dos direitos sexuais, porque abusa do corpo e da sexualidade, seja pela força ou outra forma de coerção, ao envolver crianças e adolescentes em atividades sexuais impróprias para a sua idade cronológica, ou para seu desenvolvimento psicossexual. Trata-se de toda ação na qual uma pessoa, em situação de poder, obriga outra à realização de práticas sexuais, por meio da força física, da influência psicológica (intimidação, aliciamento, sedução) ou do uso de armas, ou drogas”.

Poucas partes do corpo humano são tão desconhecidas e preconceituadas como a vagina. Vagina, para quem não sabe, é o nome do canal muscular interno do aparelho sexual/reprodutor que liga a vulva ao útero, e em pessoas adultas e saudáveis, atinge no máximo entre 8 a 15 cm de comprimento e 2,5 cm de diâmetro. Em um corpo maduro as consequências de um estupro já são devastadoras, imaginem então em crianças ainda em formação. Além dos graves machucados físicos, que podem até mesmo mutilar definitivamente um corpo infantil ainda há o risco de contrair males sexualmente transmissíveis como hepatite, HIV, HPV, sífilis, gonorreia, clamídia, tricomoníase e vaginose bacteriana, para citar alguns, e não são apenas corpos que são destroçados com tais crimes: alguns dos resultados dessa violência vão muito além do ferimento da carne e interrompem o processo saudável de evolução da mulher como um todo, os traumas psicológicos e uma eventual gestação precoce, por exemplo. Pedófilos fazem muito mais do que dilacerar corpos; eles destroem futuros “matando em vida” suas vítimas.

A BELA E A FERA

“Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte” - Simone Beauvoir

É tão bizarro que parece impossível, mas aconteceu com uma mulher do Rio de Janeiro, que após ser agredida por seu ex-companheiro, foi socorrida por Policiais Militares e encaminhada à 12ª DP Civil, em Copacabana. Enquanto o agressor era levado para uma cela, e antes que conseguisse registrar a ocorrência, um investigador da Polícia Civil, a chamou até uma sala e se trancou lá com ela. Dentro do cômodo haviam camisinhas e lá mesmo as propostas sexuais começaram. Essa mulher ainda sofreu tortura psicológica e intimidação quando o policial deixou sua arma sobre a mesa e se valeu de força física para enforcá-la, imobilizá-la e a estuprar. E ainda a coagiu a fornecer seu número de celular e a ameaçou dizendo que seria melhor facilitar, já que ele conhecia bandidos e tinha seus dados. Tudo isso em plena sede policial.

Será que alguém sente dificuldade de se colocar no lugar dessa mulher e imaginar o seu pânico? O terror de ter um policial, que dispõe de todos os seus dados como o seu mais recente algoz?

A vítima denunciou o caso à DEAM - Delegacia de Atendimento à Mulher e foi encaminhada ao IML para o exame de corpo de delito. E mesmo com o resultado do laudo e o pedido de prisão preventiva feito pela DEAM contra o investigador, o Tribunal de Justiça rejeitou o pedido. Já a Corregedoria (CGPOL) por sua vez apenas afastou o monstro de suas funções e apreendeu o seu celular para posteriormente ser periciado.

Depois de todas as barbaridades já enfrentadas por uma mulher estuprada, o que ela temeria mais que lhe acontecesse? Podem existir várias respostas para essa pergunta, mas com certeza uma delas seria o de encontrar outro carrasco, no mesmo dia, disfarçado de protetor. E se esse “lobo em pele de cordeiro” fosse um dos policiais lotados na Delegacia que você buscou exatamente para fazer a denúncia contra o homem que te violentou horas antes? Como confiar em se abrir depois desse trauma? A vítima sofre de terrores noturnos, não consegue esquecer do rosto do seu abusador e mesmo com laudos que comprovam a violência sofrida, viu seu caráter ser questionado.

Já o policial criminoso, por mais incrível que possa parecer, está sendo defendido pelo próprio Sindicato dos Policiais Civis do Estado do RJ - SindPol - sem que nenhum colega, nem mesmo as mulheres tenha se manifestado contrário. A Defesa afirma categoricamente que “o policial tem 24 anos de carreira, sem quaisquer anotações em sua ficha funcional e que a investigação comprovará que ele não cometeu os atos que lhe são imputados e que tem direito à presunção de inocência já que nada restou provado em seu desfavor.”

A omissão da sociedade e da justiça com relação à objetificação da mulher faz com que esses predadores se sintam à vontade para cometer atos cruéis, nojentos e criminosos até mesmo dentro do seu ambiente de trabalho, e é esse mesmo sistema que faz mulheres vítimas temerem o aparato que deveria lhes transmitir segurança. Para o Estado, sempre é só mais um número na estatística. Para a sociedade, frequentemente é a consequência das atitudes pregressas da vítima. Para o homem, às vezes “é um ato impensado”. Para as mulheres, raramente representa algo além da própria morte ou traumas profundos. Para os filhos das vítimas assassinadas, nunca será algo superável. Os efeitos do feminicídio não se encerram no cadáver produzido “por amor”. Seus descendentes carregam para sempre as suas cicatrizes.

Infelizmente, os índices crescentes desse crime só aumentam. O que levou a Câmara dos Deputados a aprovar no dia 09 de março a proposta de pensão especial de um salário mínimo aos dependentes menores de 18 anos, filhos de mulheres vítimas de feminicídio, cuja renda familiar mensal por indivíduo seja igual ou menor que 25% do salário mínimo. Tal benefício não será acumulável com quaisquer outros recebimentos previdenciários e se encerra quando os filhos ou dependentes atingem a maioridade aos 18 anos de idade, ou se o processo judicial não comprovar o feminicídio. A proposta agora seguirá para o Senado.
Como se dinheiro pagasse a ausência de uma mãe. Como se uma mulher não fosse um ser humano, que é amada pelos que lhe cercam.


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